Música & democracia

sexta-feira, 10 de julho de 2009.
De tão esmagadora ser, de tão incontestável parecer, a realidade de que venho falar reduz ao silêncio e expõe ao ridículo todo aquele que pense levantar a voz desejando outra realidade. Para quê falar, então? Para ser isso mesmo, uma voz, ainda que ridícula.

A música é uma das expressões mais elevadas do espírito humano. Eis o lugar-comum que qualquer decisor do mercado musical subscreveria e facilmente utilizaria como slogan para divulgar um produto. Porém — e sempre foi assim — , no caso da música como no de outras expressões desse espírito, só existe o que é publicitado. Ora o que acontece a este nível? Que acontece ao nível da divulgação da música nos maiores difusores da mesma, a rádio e a televisão? Na rádio, basta saltar de estação em estação para verificarmos, desculpe-se o exagero, que 99% do que se ouve são canções; desta percentagem, 98% são canções pop-rock; desta, 97% cantadas em inglês. Neste aspecto, o caso da música instrumental apresenta-se exemplar. É sempre colocada como música de fundo e serve para anúncios, genéricos e para preencher silêncios antes dos noticiários, não merecendo, em geral, a menção do autor. Quanto às ditas canções, se as ouvirmos um dia, ouviremos sempre as mesmas durante quinze dias e a mesma faixa do mesmo disco, o single de promoção. As leis do mercado a isso obrigam! A televisão é o que se vê: quando passa música nos canais generalistas, rege-se pelos mesmíssimos princípios.Parece que estou a ouvir: «Sim, e depois? Qual é o problema? Os maiores consumidores de música sempre foram os jovens e é disso que eles gostam! Além disso, a música popular sempre foi a música mais apreciada pelo público em geral!». Não tenho nada contra a forma da canção, o rock ou o pop, ou contra a língua inglesa. Mas é preciso reflectir sobre o que isto significa. Esta realidade, por ser tão evidente e omnipresente, não se torna inócua. Bem pelo contrário! Torna-se mais perigosa, por não percebermos o seu alcance.

A música é uma das expressões mais elevadas do espírito humano, é verdade. Mas o registo escrito da música no Ocidente remonta à Grécia Antiga e nós só ouvimos a das últimas três décadas; e, não obstante o inglês ser a língua predominante, não deixa de ser verdade que existem ainda cerca de 5.000 línguas, distribuídas por 200 países. Não haverá tantas culturas musicais, talvez, mas haverá certamente muitas mais que as que ouvimos. Ou nos dão a ouvir. E aqui reside o problema. É verdade que as lojas de discos nunca foram apetrechadas de tanta variedade, mas o imperialismo do mainstream americano e britânico, esmaga qualquer veleidade de difusão de «outras» músicas. E porquê? Porque a política editorial apenas segue a política econimicista do liberalismo. Existe de facto uma cultura dominante, e não é por acaso que uma série da televisão portuguesa se chama «História da Música Popular» e, vamos a ver, apenas se refere à música popular americana. Nunca como hoje houve tanto acesso à diversidade — paradoxalmente a globalização (anglo-saxónica) está a uniformizar tudo.


Numa ética futura de Estado (se ele ainda tiver esta designação), também estas coisas deverão ser reguladas. Não para limitar as liberdades, mas para as possibilitar. Não para absorver ou neocolonizar outras culturas e apresentá-las como exotismos, mas para incrementar a cultura da tolerância e da diversidade, a do contacto com o outro e a do conhecimento do diferente. Tratar-se-á de converter consumidores de música em apreciadores da riqueza do fenómeno humano na sua diversidade.

Eu avisei que seria uma voz ridícula a que se ergueria aqui, mas do canto hipnótico dos pigmeus F, utilizado na recolha do mel, ao Requiem de Mozart há uma tal paleta de nuances de cor que seria uma pena não a ter erguido.

A democracia, pensando em termos globais, planetários — e já só é possível pensar nestes termos —, está em perigo quando não há lugar efectivo para a diferença. Trata-se de uma forma de fascismo velado. As pessoas pensam que são livres de escolher, mas estão apenas a consumir o que lhes dão. Pensam que conhecem mais, e conhecem, mas uma reciclagem do mesmo. É certo que existem excepções — a dos criadores e dos melómanos —, porém, estão pateticamente entrincheirados nos seus clubes e cultos. É muito romântico: «os alternativos, o público da música contemporânea e erudita», mas... e as massas? As massas não têm de ser, necessariamente, acéfalas, analfabetas e musicalmente monolíticas.
Paulo Carvalho
Artigo publicado originalmente na revista Zundap

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Texto

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
 
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